Folha de Sp, 01 agosto de 2008
A violência, no fundo, é reação a problemas não imediatamente percebidos. Por isso, não basta fornecer armas à segurança pública
A EXTRAORDINÁRIA escalada da violência em nossas cidades, inclusive em Salvador (BA), exige reflexão para encontrar os caminhos da paz na sociedade.
A violência emerge como conseqüência de alguma outra coisa, como sintoma de problemas não imediatamente percebidos. A violência, no fundo, é reação a tais problemas. Por isso, não basta fornecer armas aos funcionários da segurança pública.
A violência nasce da desesperança, dos caminhos fechados, da falta de oportunidades para crescer e construir uma vida digna a partir do estudo, do aprendizado de uma profissão, da disciplina e do sacrifício para conseguir constituir uma família, ter uma casa para abrigá-la, gerar filhos, podendo educá-los.
A raiz da violência, que é mais difícil de ser reconhecida, está no modo de tratar o outro a partir do próprio interesse, sem considerá-lo na sua realidade pessoal, sem respeitá-lo na sua dignidade própria. A raiz da violência consiste em não amar o destino do outro, não se interessar pelo bem dele, dando sempre a precedência ao próprio interesse, à própria conveniência e vantagem.
Nesse sentido, as relações familiares podem estar marcadas por essa raiz de violência, que poderá explodir em ato de agressão, como Caim fez com o irmão Abel. As relações de intimidade de muitos namorados contêm essa raiz de violência quando uma pessoa pouco se importa com o bem da outra, sobressaindo o interesse individual. As relações entre funcionários e cidadãos nas repartições públicas, nas diversas atividades profissionais, contêm, muitas vezes, essa mesma raiz de violência.
Na origem da violência há, portanto, uma história de desrespeitos, frustrações, humilhações, negativas que fecham os caminhos para a realização de um projeto de vida pessoal e familiar positivo, construtivo para a pessoa e para a sociedade. Dessa maneira, acumulam-se tensões que poderão explodir quando menos se espera.
Além disso, dificilmente podemos avaliar o poder "educativo" dos debates no Congresso, nos meios de comunicação e, por vezes, nas escolas para defender o aborto, o uso de células-tronco, a legitimidade da eutanásia. Forma-se, sobretudo nas gerações mais jovens, a consciência de que se pode eliminar uma vida humana quando ela se torna um peso, quando atrapalha o sonho de felicidade. Matar pai e mãe, jogar pela janela a própria filha torna-se possível. Recentemente, uma mãe que jogou a filhinha pela janela no Paraná disse ao repórter: "Queria me livrar desse pacote". Por outro lado, aparecem a cada dia no noticiário figuras das mais altas esferas dos poderes públicos que cometem falcatruas, enriquecem com o dinheiro público e continuam sorridentes, livres, impunes, com seu poder e prestígio, como se nada fosse.
É evidente o extraordinário poder que esses fatos têm para desestimular no cidadão comum, sobretudo nos mais jovens, atitudes de honestidade e de sacrifício para conduzir com dignidade sua vida apertada. Cabe ainda uma palavra sobre políticas públicas que incentivam uma visão banal da vida, quase um jogo que não exige muita responsabilidade.
A oferta gratuita de camisinha nas escolas públicas não constitui um incentivo para se concentrar no estudo. Será que a oferta de camisinha vai melhorar os níveis de aprendizado dos adolescentes nas escolas públicas, que já foram avaliados entre os mais baixos do continente? Creio que também não estimulam a elaboração de um projeto de vida que exija disciplina e sacrifício. É muito provável que certas práticas façam crescer a percepção da outra pessoa como ocasião para um momento de lazer, instrumento da própria satisfação. Não parece uma boa base para enfrentar de modo positivo e sábio os desafios da idade adulta.
Nesse contexto, o mundo das drogas oferece ganhos fáceis, o poder das armas a quem sempre se viu humilhado, um caminho rápido para conseguir tudo o que parecia inatingível. Oferece também balas a bom mercado, para matar e para morrer, um jogo a mais nesse horizonte sem ideal de vida e sem objetivos para construir na dignidade e na paz a própria existência, a família e a sociedade. É urgente que adolescentes e jovens possam reconquistar a percepção da própria existência como relação direta com o mistério que está na origem de tudo, para encontrar motivos adequados para elaborar um projeto de vida digna e de crescimento no bem e na paz para si e para toda a sociedade.
CARDEAL DOM GERALDO MAJELLA AGNELO, 74, doutor em teologia, é arcebispo de Salvador (BA) e primaz do Brasil. Foi presidente da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) de 2003 a 2007.
Um comentário:
sou educadora e "luto" pela paz em sala de aula e na vida em sociedade acima de qualquer tend~encia o texto me pareceu bastante pertinente e vou utiliza-lo como mote de discussão com meus alunos no curso de Filosofia.
Virginia
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